Quem chega ao pódio?

O que as olimpíadas de matemática dizem sobre as desigualdades da educação básica no Brasil

Bettina Gehm
9 min readNov 18, 2020

A Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), que em 2017 foi estendida às escolas privadas, representa um incentivo aos talentos na área das exatas. Segundo o regulamento, todos os alunos medalhistas são convidados a participar do Programa de Iniciação Científica Jr., que os prepara para um futuro desempenho profissional e acadêmico. Mas grande parte das medalhas se concentra em alguns estados do Brasil, e isso está correlacionado aos recursos financeiros disponibilizados para esses locais. Chama atenção, ainda, a disparidade de gênero entre os participantes desse tipo de competição.

Analisando as listas de premiados da OBMEP nos anos de 2017, 2018 e 2019, os estados de São Paulo e Minas Gerais se destacam com as maiores quantidades de medalhas para alunos de escolas municipais e estaduais — mais de 1.100, em média. A diferença para o terceiro lugar é um abismo: o Paraná teve uma média de 332 medalhas. Os dois primeiros também são os estados que recebem mais recursos do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica. Da mesma forma, os estados do Acre, Roraima e Sergipe, cada um com menos de 60 medalhistas em média, ocupam as últimas posições quanto à distribuição do Fundeb. Matematicamente, trata-se de uma correlação positiva — quanto mais dinheiro do Fundo, maior tende a ser o número de medalhas no estado e vice-versa. Essas informações ficam mais claras na tabela abaixo, em que foram utilizadas as médias dos anos analisados:

Na distribuição anual dos recursos do Fundeb, são consideradas as matrículas nas escolas públicas e conveniadas de cada estado, além de um valor mínimo por aluno. Por isso São Paulo, por exemplo, recebe 22,5% do Fundo: a distribuição considera o tamanho das redes de ensino. Em 2019, Roraima teve acesso a R$835 mil — isso representa 0,5% do orçamento do Fundeb naquele ano; o valor destinado a São Paulo foi de R$37,4 milhões. O Fundo não beneficia escolas federais; por isso, nesta reportagem foram consideradas apenas as instituições estaduais e municipais. Os dados sobre a distribuição do Fundeb entre os estados são da Secretaria do Tesouro Nacional.

Em cada edição da OBMEP, são concedidas aos estudantes de escolas públicas 500 medalhas de ouro, 1.500 de prata e 4.500 de bronze, de acordo com os níveis de participação. A competição é organizada da seguinte forma: o nível 1 é destinado aos alunos do 6º e 7º ano do Ensino Fundamental; o nível 2 para os alunos do 8º e 9º ano, e o nível 3 para o Ensino Médio. A primeira fase da Olimpíada consiste em uma prova objetiva com 20 questões de múltipla escolha. Os participantes com melhor desempenho nessa etapa são classificados para a segunda fase, uma prova discursiva composta de 6 questões. A premiação, para os melhores da segunda fase, é dividida entre escolas públicas e privadas, com um número menor de medalhas destinado às escolas públicas seletivas.

Em 2019, a primeira fase recebeu inscrições de 54.831 escolas, incluindo públicas e privadas, em 99,71% dos municípios brasileiros. Foram 18.158.775 alunos participantes, dos quais 949.240 se inscreveram na segunda fase.

A correlação entre recursos financeiros e quantidade de medalhas na OBMEP não é um fenômeno restrito apenas a alguns estados. Nos mapas abaixo, é perceptível que quem chega ao pódio é, na maioria das vezes, quem estuda nas regiões sul e sudeste. Com algumas exceções, essas regiões também são as que têm maiores redes de ensino público e, consequentemente, recebem maior percentual do Fundeb.

Exceções que chamam a atenção são os estados da Bahia e de Santa Catarina: comparando os mapas, as cores deles se invertem. A Bahia, fugindo da correlação, recebe em média 7% do Fundeb (a 3ª maior porcentagem entre os estados), enquanto seus alunos das redes municipal e estadual ganham 107 medalhas. Santa Catarina, por outro lado, recebe 3,7% do Fundo e ostenta, em média, 309 medalhas.

Pela legislação atual do Fundeb, no mínimo 60% do dinheiro deve ser aplicado no pagamento de profissionais da educação — na prática, alguns estados chegam a investir 90%. O restante do Fundo pode ser destinado para a compra de materiais ou manutenção das escolas. Com dados do Censo QEdu de 2018, é possível comparar Santa Catarina e Bahia em termos de infraestrutura das instituições de ensino.

Em 2018, ano em que foram coletados os dados de infraestrutura pelo Censo QEdu, a Bahia teve 99 medalhistas e recebeu R$10,9 milhões do Fundeb. Enquanto isso, Santa Catarina obteve 363 medalhas e R$5,7 milhões do Fundo.

Nos anos de 2017, 2018 e 2019, as escolas estaduais foram predominantes no total das medalhas, tanto no geral quanto em São Paulo, estado com mais medalhistas. As instituições federais são minoria, ao passo que também têm menos alunos e, em parte, são escolas seletivas. A planilha com os totais de medalhas, as médias e a distribuição do Fundeb pode ser acessada por este link.

Já que a distribuição do Fundeb considera o tamanho das redes de ensino e um valor por aluno, ela não explica na totalidade a distribuição das medalhas na OBMEP — ainda que exista uma correlação. A reportagem fez no Excel uma análise múltipla, onde mais de uma variável é considerada, que resultou no seguinte: a presença de biblioteca nas escolas é significativa ao responder pelo desempenho dos alunos na Olimpíada. Se desconsiderada a variável dos recursos do Fundeb, são o laboratório de informática e a sala para atendimento especial que aparecem, matematicamente, como significativos. Ou seja, esses fatores da infraestrutura das escolas são os que melhor preveem, ou explicam, a variedade na distribuição das medalhas na OBMEP. Mas isso é o que diz a matemática; na realidade, diversos outros fatores devem ser considerados ao argumentar sobre a disparidade entre os números de medalhistas.

A professora Márcia Jacomini desenvolve pesquisa em Políticas Públicas para Educação e Gestão Educacional e é editora-chefe da revista Fineduca. Ela explica que o Fundeb é composto por um percentual de impostos que cada estado arrecada; quando um estado não consegue arrecadar o suficiente para atingir o valor mínimo a ser investido por aluno, a União faz a complementação do recurso. Acontece que estados ricos, como São Paulo, nunca precisam dessa complementação e, mesmo assim, ficam acima do valor mínimo estabelecido. Nenhuma UF investe, nos alunos da educação básica, menos do que o mínimo do Fundeb. Mas alguns estados conseguem investir mais.

Ainda segundo a professora Márcia, o valor por aluno determinado no Fundeb é inferior ao mínimo necessário para se garantir o ensino de qualidade. O Custo Aluno Qualidade (CAQ), calculado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, mostra qual seria o valor a ser investido em cada aluno da educação básica anualmente, separando etapas e modalidades de ensino. O CAQ é produzido a partir de um conjunto de insumos que são considerados fundamentais. “Você chega nesse valor considerando o que a escola precisa, número de profissionais da educação e quanto eles devem receber”, Márcia afirma. “E o valor é significativamente maior do que o estabelecido no Fundeb”.

Portanto, ainda que não contemple tudo o que determina um bom ensino, a infraestrutura de uma escola é importante inclusive ao produzir o CAQ. “Considerando que o financiamento é importante, estados em que o valor por aluno do Fundeb é superior [ao mínimo] teoricamente são estados que têm uma rede de ensino mais estruturada, escolas com mais recursos e podem pagar melhor seus profissionais. E todos esses fatores podem corroborar para um resultado melhor nas olimpíadas”, aponta a professora Márcia.

Disparidade de gênero

Outro aspecto das olimpíadas de matemática é o da participação feminina e masculina. Na OBMEP, os anos de 2017, 2018 e 2019 tiveram uma média de 27,4% das medalhas conferidas a meninas; os meninos são 72,6% dos medalhistas. Além de conceder medalhas e menções honrosas, a OBMEP é também uma das seletivas para a Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM). Segundo o regulamento, os 300 alunos com maior pontuação na segunda fase da OBMEP em cada nível são convidados para a fase única da OBM.

A OBM pode ser um passaporte para desafios maiores: existem competições com a participação condicionada exclusivamente à premiação na Olimpíada, como a Asian Pacific Mathematics Olympiad e a Iranian Geometry Olympiad. Uma vaga na Olimpíada Internacional de Matemática (IMO) depende da premiação na OBM e do rendimento do aluno em testes de seleção. Em 2020, a equipe que representou o Brasil na IMO teve 6 participantes, todos do sexo masculino.

As meninas já começam em menor número na lista de convidados para a fase única da OBM, que não conta os classificados pelas olimpíadas regionais. Além disso, se comparadas as listas de convidados e de confirmados para a prova, elas tendem a desistir mais do que os meninos. A tabela abaixo é uma comparação entre os anos de 2017, 2018 e 2019.

Letícia Rangel, professora aposentada do Colégio de Aplicação da UFRJ que coordenou o projeto Meninas Olímpicas, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), acredita que um conjunto de fatores determina que meninas percam o interesse pela matemática e por áreas afins desde muito cedo. “O que se observa no contexto das olimpíadas de matemática é um reflexo de um fenômeno muito mais amplo”, afirma. “Pesquisas relacionam fatores que afastam as meninas das áreas exatas com questões socioculturais que têm início nos primeiros anos de vida. Por exemplo, os meninos costumam ganhar brinquedos de montar, já meninas aqueles que são relacionados ao cuidado. Estereótipos de gênero têm um impacto importante na confiança e no interesse das meninas por essas áreas”. Segundo a professora, a baixa participação do sexo feminino não é uma questão de capacidade, mas de autosseleção.

O fato é que os meninos participam em peso na fase única da OBM, e as meninas são minoria. Os gráficos comparam o número de participantes do sexo feminino e masculino, de acordo com a lista de confirmados para a prova: quem tem mais chances de chegar ao pódio, nesta olimpíada, são eles.

O projeto Meninas Olímpicas, coordenado pela professora Letícia Rangel, atendeu à chamada CNPq/MCTIC Nº 31/2018 — Meninas nas Ciências Exatas, Engenharias e Computação. Letícia explica que a iniciativa não tinha as olimpíadas como fim, mas como meio “para interferir nos fenômenos de autosseleção e autoeficácia, incentivando meninas para a matemática e para a área de exatas em geral”. O projeto, além de atividades típicas de preparação para olimpíadas nas escolas, promoveu a visitação a ambientes acadêmicos e contato com profissionais de carreiras que envolvem ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Regularmente, foram realizadas oficinas envolvendo, além de desafios matemáticos, jogos, discussões e painéis sobre a questão de gênero na área das exatas.

A chamada do CNPq não se repetiu e o projeto Meninas Olímpicas do Impa foi suspenso, mas plantou sementes: projetos de robótica desenvolvidos nas escolas proporcionaram que as alunas ocupassem posição protagonista em eventos onde apresentaram o que produziram. A professora Letícia relata que, além disso, atualmente é possível acompanhar as meninas em redes sociais comentando a boa relação desenvolvida com temas de matemática e de ciências em geral.

Reportagem produzida na disciplina Ciberjornalismo II, ministrada pelo professor Marcelo Träsel no curso de Jornalismo da UFRGS.

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